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11/02/2021
O que significa escutar com cuidado?
Atravessamos um período de mal-estar no século XXI cujos nomes para identificar a sensação de desnorteio subjazem na crise de referências, representações e um estado de anomia social. A negação da interioridade – recusar o declínio do corpo/envelhecimento a partir do avanço e oferta da medicina estética para esse ínterim – é um interessante aspecto paradigmático que desnuda a cultura atual do: evitar a dor a todo custo. As pílulas da felicidade perfazem o receituário movediço com sua ética literal, per se, oposta ao sofrimento.
O desfiladeiro das últimas décadas evidencia o caos nos complexos familiares, políticos, religiosos e jurídicos, que contemplam de antemão dois cenários com reflexos dantescos pululando sobre o mal-estar, e um terceiro com a pretensa responsabilidade de solucionar, são eles: esfera do indivíduo; do espaço institucional; e a esfera da sociedade. Pois bem, conforme Freud, se o coletivo não é nada senão o sujeito do individual, dessa feita, observamos a reverberação da precariedade psíquica nos indivíduos; a diminuição dos espaços para a reflexão sobre o sofrimento e a dor; e em léguas foucaultianas temos uma sociedade que não oferece tratamento, apenas punição e leis severas aos que não se adaptam à loucura mercadológica. Esses três elementos se coadunam à temporalidade fugidia, fluída, compactada e desalmada. Quando mais rápido, tanto melhor e reconhecido. Aceleração e alienação voam de mãos dadas. Se o lerdo perde o objeto, o rápido demais perde o sujeito.
É dentro dessa constelação que fica uma pergunta da psicanálise: o que é escutar com cuidado seja qual for o tipo de sofrimento ou queixa daquele que procura o atendimento psicológico? Sabemos que é necessário esse cuidado, já que se têm pouquíssimos bons ouvintes na psicoterapia. E isto tem sua linha de argumentação no campo tanto pessoal do dito profissional quanto estrutural como mencionado nas linhas anteriores. Mas talvez colocar a pergunta ao contrário nos leve a algo. O que seria uma escuta sem cuidado? É justamente um ouvir muito mais em relação a nós mesmos do que na perspectiva do discurso do outro. E o que isto significa? Significa escutar uma história e pensar numa história similar; imaginar-se como se sentiria se estivesse no lugar do outro. Convencionalmente essa forma de agir de alguns profissionais vem formatada na seguinte linguagem: “sei o que você quer dizer com isso; sim, sim, entendo perfeitamente; é justo mesmo; sinto por você; sinto sua dor; que legal, me conta mais”.
A maneira como se escuta está centrada e focalizada em si mesmo, por isso, não raro, ocorre em atendimentos psicológicos uma solidariedade, empatia e sentimentos de pena e comiseração altamente forçados e artificiais, em outras palavras, tóxicos. Em suma, é uma escuta narcisista e egocêntrica e quando o terapeuta não consegue centrar de imediato em sua autoimagem o que o paciente conta, tende a achar a pessoa esquisita, estranha, tola, estúpida, irracional, ou seja, sensação clara de que não está entendendo a outra. Essa surdez profissional atende ao requisito imediato da aceleração das formas de vida, repetir, buscar fórmulas e receitas prontas, ir para o já visto. Postura semelhante à criança pequena que se esconde no mesmo lugar para ser achada. Porém, tampouco se pode dizer que a clínica seja um laboratório de experimentação e inovação, com o outro sendo meu objeto de estudo, isso é frieza no sentido lato. O terapeuta – no setting analítico – não é um pesquisador. Em clínica, não é possível uma neutralidade como preza a cartilha científica, tanto que Freud nomeou como transferência algo que circula entre o psicanalista e o paciente. Um início interessante como salienta o psicanalista Lacan é não tentar compreender muito rapidamente, pois ao tentar entender se reduz o que o paciente fala ao que já pensamos saber. Na insistência de demonstrar ao outro que o entendemos, mostramos o oposto disso. Adiar a compreensão para ouvi-lo como nunca antes ele fora ouvido. Se nunca se escutou, não tem condições de escutar o outro. Isso é o cuidado, inclusive, de si. Caso contrário, tentará fechar buracos em vão, tamponar faltas, carregar água na peneira.
(*) Texto enviado pela Fundação Educacional de Penápolis - FUNEPE (www.funepe.edu.br)
Texto enviado pela Fundação Educacional de Penápolis (*)
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