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ARTIGOS

16/05/2020

A Odalisca do Pica-Pau

No conto A Máscara da Morte Rubra, de Edgar Allan Poe (olha eu citando Poe novamente...), publicado em 1842, enquanto a praga chamada “Morte Rubra” devasta a região o príncipe Próspero reúne e se tranca numa abadia fortificada com mil dos seus amigos e vassalos, buscando num confinamento festivo escapar da doença (historicamente, um surto de cólera que atacou a Europa na primeira metade do século 19). Após alguns meses de recolhimento e quando a pestilência grassava do lado de fora, o príncipe realiza um extravagante baile de máscaras para entreter seus companheiros. 
O conto tem como ápice essa festa e a presença inesperada de um misterioso e assustador intruso não convidado e nem bem vindo. Como é um conto antigo e conhecido, me permitirei um spoiler revelando que quem penetra no auge da festa é a própria Morte Rubra, personificada numa figura macabra, alta e lívida vestida com mortalha da cabeça aos pés. Narra Poe: “A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não aprovado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra. Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates”. O horror do conto é, justamente então, que apesar de todos os cuidados do príncipe em se trancafiar com os amigos tentando ludibriar e manter a doença lá fora, ela deu um jeito de entrar e imiscuir-se pelos salões festivos da fortaleza, trazendo morte e devastação para todos que lá estavam isolados iludindo segurança.
Confinados estamos todos nós hoje, de um jeito ou de outro, total ou parcialmente, com a atual pandemia em curso do coronavírus. Cientistas, autoridades políticas, judiciais e de saúde (e, claro, um monte de gente comum palpiteira subitamente arrogando para si ares de profundos conhecedores em epidemias) divulgam, alegam e martelam que o isolamento e o distanciamento social são os mais eficazes procedimentos para combater o avanço da contaminação e seus picos. E à força de leis, decretos e ações determinam que todos fiquem em casa, senão voluntariamente que seja então a contragosto e ao fórceps de promessas de multas e punições. Alguns órgãos de Imprensa assumiram alegremente para si essa função fiscalizadora e intimidatória e reforçam ad nauseam a hashtag fique-em-casa, minimizando informações positivas e recheando suas coberturas jornalísticas com dados diários de números de casos e de mortes ilustradas por aterradoras imagens de corpos obliterados em corredores de hospital e covas abertas, numa sinistra ação “didática” que seria a de nos educar pelo medo a ficar-em-casa. 
Enquanto vacina não há e como em alguns países estrangeiros a tática parece ter dado certo (embora mesmo com isolamento tenha morrido muita gente em alguns deles; e que outros sequer determinaram recolhimentos radicais e não tiveram tantos casos assim; sem contar o governador Andrew Cuomo, de Nova Iorque, reconhecendo surpreso que 66% dos pacientes de covid-19 chegando aos hospitais estavam se contaminando justamente em casa!), procuramos seguir as determinações superiores ficando confinados na medida do possível, malgrado os dissabores presentes, reais e diários, os grandes prejuízos pessoais e econômicos advindos e a advir e um desejo cada vez mais crescente e incontrolável de quase todos de que tudo acabe logo e voltemos ao nosso cotidiano. Aliás, nesse ponto é oportuno repetir trecho do meu artigo anterior já antecipando e precavendo de certeiras vociferações dos odiadores de plantão, partidários fanáticos e incontestes do #fiqueemcasa: “Ter afã de retorno à normalidade não é um desdém para com a doença, para quem ficou doente, morreu ou pode vir a morrer”. Registre-se.
Atreladas a esse mantra do recolhimento vieram por parte das autoridades de saúde e políticas determinação e obrigatoriedade para que todos usem máscaras de proteção. Se num primeiro momento da pandemia recomendava-se a máscara apenas a quem estava com suspeita da doença para não transmiti-la aos demais e, principalmente, para precaver da contaminação profissionais das áreas médica e hospitalar, mudou-se de ideia quanto à necessidade, ordenando-se uso para todos em geral. E então de repente viramos nós aquela multidão antes comumente vista em países orientais circulando com o rosto coberto de máscaras cirúrgicas e que, confessemos, nos causava certo estranhamento e mesmo temor por remeter a fragilidade e doença, ainda que para muitos desses povos tratava-se de questão mais cultural ou higiênica do que sanitária propriamente dita. Máscara tornou-se rapidamente comum: desde as básicas e triviais de paninho branco ou estampado feitas pelas costureiras de bairro, decoradas e ilustradas, industriais e hospitalares padrão, artesanais feitas com filtro de café e Perflex até as grifadas de marcas como Louis Vuitton, Gucci e cravejadas de cristais Swarovski das celebridades, pseudo-celebridades e cafonas em geral. Virou ainda fonte de lucro milionário para empresários dos mais diversos ramos, notadamente aqueles com ligações próximas a governos municipais e estaduais, que ganhando licitações e concorrências (idôneas ou suspeitas) suspenderam suas produções habituais de autopeças, eletroeletrônicos, calçados, alimentos, siderúrgicos, bebidas, vestuário, etc. para fabricar máscaras! 
Não deixa de ser irônico que vigorem no Estado e no país leis coibindo o uso de máscaras ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face em estabelecimentos comerciais, públicos ou privados, nas manifestações públicas ou que bancos e lotéricas portem avisos implicando com quem adentra a seus recintos até com o capacete cobrindo o rosto. Porém agora por medo da doença, mesmo de máscara todos são insuspeitos. E como brasileiro consegue fazer piada de tudo, segundo um meme de redes sociais aumentou em 65% o número de gente bonita circulando pelas ruas, já que com as máscaras cobrindo metade das caras a face deixou de ser o primeiro referencial de beleza notado e a maioria das pessoas ganhou um charme misterioso. O risco é encantar-se com a boniteza dos olhos, a sinuosidade das curvas ou o tônus dos músculos e baixada a máscara topar com um ogro ou uma megera por detrás dela, como no desenho Pica-Pau Briga em Marrocos, de 1953: nele o pássaro topetudo é um legionário estrangeiro que deve proteger a princesa Salami da ameaça do sheik El-Rancid, que quer roubá-la para seu harém. Pica-Pau quando a vê se encanta com a linda e ondulante odalisca dançando mascarada em sua tenda no deserto e entre olhos arregalados, caras e bocas de cartoons e seus característicos heh-heh-heh-hehhehs vislumbra a possibilidade de se dar bem com a aparente beldade. Mas El-Rancid consegue raptar a princesa e quando se prepara para aproveitar dela descobre tirando o véu uma bruxa nariguda e dentuça. Na verdade Salami engana o sheik exibindo uma máscara de feia sob o véu. Pica-Pau esperto percebe o truque, descobre a verdadeira beleza da princesa e ao final beija a linda odalisca morena.
Gracejos a parte e sem intenção de ferir suscetibilidades, não trazendo para próximo de nós algo como uma Morte Rubra camuflada e infiltrada, um ogro ou uma megera nariguda tipo de desenho animado, que essas obrigatórias máscaras que todos devemos usar cumpram então devidamente a função auxiliando com as outras medidas adotadas e recomendadas a nos manter verdadeiramente saudáveis e livres do temido vilão coronavírus.  

(*) Paulo de Carvalho é formado em História, ex-jornalista e hoje atua na área da Gastronomia

Paulo de Carvalho (*)



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