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ARTIGOS

24/03/2019

Puxamos um gatilho todos os dias, porque todos os dias somos humanos?

O difícil foi saber como começar este artigo. Desnorteado, não sabia ao certo como abordar o assunto, mas sensível às minhas necessidades mais intrínsecas, eu queria escrever, precisava escrever sobre a brutalidade ocorrida na escola estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Senti que eu também puxei aquele gatilho, senti que também dei machadadas.
Investi grande parte do tempo, do último dia, pensando muito sobre esta dificuldade. Concluí que a minha dificuldade é a dificuldade da maioria das pessoas. Não sei como começar o artigo da mesma maneira que as pessoas, em geral, não sabem como organizar o pensamento diante de um episódio de horror dessa amplitude.
A barbárie cometida pelos dois jovens em Suzano é difícil de ser explicada. Diversas áreas do conhecimento e seguimentos da sociedade se debruçam sobre estudos e indícios, análises e especulações, tentando desvendar o que de mais oculto habita em cada um de nós, e que se torna objeto (superficial) de reflexão apenas em episódios que chocam toda nação, mas que deveria ser matéria de discussões cotidianas.
Depois de muito refletir sobre, construí o entendimento que discorrer sobre eventualidades dessa gravidade demanda tempo. A chacina na escola Raul Brasil é a digestão de dois quilos de carnes consumidas em um rodízio por uma pessoa. O processo é vagaroso, enfadonho, silencioso e individual. A conclusão é bem posterior ao calor dos acontecimentos e a compreensão das causas, mesmo que remotamente, nos remete à uma ressaca existencial que não vale à pena evidenciar. Daí nasce o tabu e a dificuldade em revolver às tragédias humanas, e tornar público o discurso sobre aquilo que é produto da dolorosa digestão.
Em termos mais objetivos e generalistas, cada um dos homens e mulheres tocados, de alguma maneira, por tamanha atrocidade, sente um pouco de vergonha por pertencer à mesma espécie animal que puxou aquele gatilho, que deu aquelas machadadas. Com um pouco de reflexão é possível identificar, em cada um de nós, fragmentos daquele mesmo ódio que mancharam de sangue o chão da escola.
As pessoas mortas em Suzano, a execução de Marielle e Anderson, os homicídios ocorridos cotidianamente nas vielas de qualquer comunidade, os agentes de segurança mortos pelo crime organizado, as ‘Marias’, ‘Terezas’, ‘Luzias’ e tantas outras selvagemente sepultadas pelo braço insolente do patriarcalismo. Todas as formas de manifestação de intolerância, que explode dia a dia em todos os lugares, trazem à tona a condição mais horrenda do ser humano: A capacidade de odiar.
Odiar o diferente, odiar por não concordar, odiar por não compreender, odiar para se satisfazer, odiar para se superar, odiar para se defender, para dominar, odiar por odiar...odiar!
Para possuir o potencial de odiar basta apenas ser humano, apesar do ódio não pressupor a violência. Devemos reconhecer que esta potencialidade é uma condição humana, instância integrante da composição do Ser, assim como é o medo, a angústia, a ansiedade e a capacidade de amar, o altruísmo, a empatia.
O que nos resta?
Indicar culpados, apontar falhas em políticas públicas, enumerar costumes sociais, vícios, doenças. Agrupar proposições científicas, especulações midiáticas, nos distanciarmos. Distanciarmos dessa natureza obscuramente assassina que é tão estranha à gente, mas que de maneira maldita, silenciosa, e tênue nos compõe também. 
O ódio não se manifesta apenas quando se puxa o gatilho ou se desfere uma machadada. O ódio se manifesta quando a empatia nos falta. Quando decidimos ficar do lado de quem avança em discursos que segregam. O ódio se manifesta quando nos apoiamos em ideologias que separam interesses econômicos, políticos e sociais sem considerar o lado humano das pessoas, e as consequências que a tomada de partido causarão. 
O ódio, enquanto condição humana, não foi uma maldição nos dada ao nascer. Ele, assim como qualquer potencialidade humana, existe para nos dotar das capacidades suficientes para crescer, socializar e superar as dificuldades no transcorrer da existência. Precisa ser canalizado, equalizado, mediado por outras habilidades para que atue de maneira construtiva, colaborativa, protegendo a existência, a sobrevivência. É uma habilidade em sentir que foi selecionada pela espécie, muito que provável, para estes fins.  
É um subproduto humano que depende de infindáveis variáveis. Quando submetido à atmosfera de intolerância, fomento de desigualdades, preconceito e incompreensão, acaba assumindo o controle das ações, vestindo a roupagem da destruição, da violência e do caos.
Toda maneira de se resolver um problema criando outro, propicia ambiente fértil para proliferação da cultura do ódio, da intolerância, e é exatamente aí que a humanidade se perde. 
Violentar para combater a violência, se isolar para repudiar o isolamento, armar para combater as armas já existentes... 
As atrocidades semelhantes à ocorrida na escola Raul Brasil, em Suzano, sempre vão existir, no mundo e em nosso país. Talvez sempre existirá manifestações descontroladas de ódio e isso não dá para prever ou combater até a extinção. A natureza humana talvez nunca alcance sua sublimação na plenitude do amor mútuo entre todos da espécie. Isto tudo está fora do controle de todos, mas existe algo que possamos fazer, que depende de treino, de esforços, de entrega, que depende da multiplicação. 
Assim como o ódio, que é produto intrínseco em cada um, pode ser aflorado e ocupar patamares sem precedentes, produzindo resultados horrendos, a capacidade de controla-lo e investir no potencial produtivo humano também é possível e urgente.
Se por um lado a polarização da sociedade pode fomentar o discurso de intolerância, capaz de transmutar a condição natural de odiar e a elevá-la a níveis extremos que culminam na violência, do outro, possuímos a capacidade inata à autorrealização, à evolução para o ótimo.
A empatia dá para se praticar. Aprender, recuperar ou ampliar a capacidade de aceitar o Outro com suas possibilidades e limitações são esforços que estão ao alcance de todos...
Carl Rogers (1902-1987) exímio entusiasta da Psicologia Humanista sentenciou que “acredita que se uma pessoa é aceita, plenamente aceita, e nesta aceitação não há nenhum julgamento, somente compaixão e solidariedade, o indivíduo está apto a se ver consigo mesmo, a desenvolver a coragem de abandonar suas defesas e encarar seu eu verdadeiro” 
Encerro este artigo saindo da zona de conforto. Em Suzano, na escola Raul Brasil, talvez eu também tenha dado tiros e machadadas.
Convido à discussão sobre o que de mais obscuro habita cada um de nós. Poder falar abertamente sobre as condições humanas mais deficientes, que estão, em certa instância, impregnadas em cada um de nós ainda é um processo que está acontecendo lentamente em nosso país.
Quando se aumenta a consciência pública de algum problema recorrente e inevitável, que existe em nosso meio, se aumenta a possibilidade de ajuda, de compreensão destes fenômenos, e se potencializa a capacidade de encontrar recursos para evitar o luto dentro das escolas, nas ruas, nas casas e nos corações das pessoas.
Não só o ódio é uma condição inerente ao humano, a capacidade de aprender a amar também o é!

(*) Emerson Puche Bueno, Psicólogo Clínico, especialista em Docência Superior na área da Saúde. Mediador de Conflitos certificado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agente credenciado pelo Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar do Estado de São Paulo. CRP 06/131902

EMERSON BUENO (*)



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